em apuros

Passo Fundo, 02 de fevereiro de 2012.


Uma amiga em apuros sem querer, uma lei maluca aprovada, a sujeira na beira da praia em Cidreira/RS, a história que minha mãe contou sobre uma prima, enfim... coisas que vi e ouvi nesta última semana me fizeram acreditar que o mundo está mesmo de cabeça para baixo (pelo menos de onde posso vê-lo).

Claro, acredito que a transição de um conjunto de valores para outro integre a dinâmica da história. Que de tempos em tempos precisamos rever posturas diante das novas configurações que o contexto cotidiano assume (e as assume não por conta própria evidentemente). Que cedo ou tarde surgem novas religiões, as pessoas assumem novos papéis e o mundo precisa de outros cuidados. Mas tem de ser tão rápido? E, sobretudo: tão radical?

Uma noite destas me surpreendi debatendo com um amigo a questão da radicalidade de algumas medidas/idéias. Ele dizia, e talvez eu não possa lhe tirar de todo a razão, que chega um momento em que o caos é tanto que são necessárias medidas radicais para que pelo menos as pessoas prestem atenção no tema em pauta, passem a refletir sobre ele. E eu acrescentaria a esse argumento ainda outra questão: para que, pelos menos, se as pessoas não entendem a relevância ou gravidade de determinados comportamentos, obedeçam o que está estabelecido na lei, pois ela existe, suponho, para garantir a integridade humana, a justiça e o bem social.

sempre tem gente que tenta, pena que não é todo mundo!
Por outro lado, alguma coisa em mim se inquieta diante dessas justificativas. Não me parecem satisfatórias. Certa vez o professor Gerson Trombetta num dos debates do Circuito de Cinema, Cultura e Psicanálise, falando sobre uma das “faces do mal” (tema do encontro), ponderou que a racionalidade e a irracionalidade podem ser duas faces da mesma moeda. Ao construir sua fala ele disse que “há irracionalidade na tolerância exagerada”, algo sobre o que eu ainda não havia pensando. No dia seguinte comentando no twitter sobre o assunto, ele arrebatou meus pensamento dizendo: “Mais dramático ainda é pensar que há racionalidade (da boa) na intolerância!!!"

Nunca esqueci esta metonímea. Me parece que tudo que é radical implica na ignorância do contexto, porque tende a simplificação, em extremos paradoxais e isolados, do cenário complexo e integrado que é a realidade e a condição humana. Precisamos de sensatez para avaliar cada situação e não acredito que leis e medidas que a ignorem possam frutificar, sob a pena da cegueira. 

Já leu Saramago?

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Cidade suspensa

Passo Fundo, 22 de janeiro de 2012.

Quando resolvi escrever essa crônica a primeira coisa que me veio à mente foi o título. Sua referência é uma homenagem ao livro Cidade Sitiada, de Clarice Lispector, que li muito cedo na vida, talvez cedo até de demais, e pouco me lembro do enredo. Mas sinceramente, neste caso, o enredo não é mesmo muito importante.

A menção ao livro não serve para reprisar uma história, mas para referendar uma sensação, a sensação que esta história traduziu para mim ao lê-la, e que ficou gravada na memória mais do que o próprio enredo que me levou a ela.

Falo do estado de suspensão do tempo e do espaço que sentimos quando o dia, as horas, as coisas, resolvem arrastar-se diante dos nossos olhos, como se deixassem um borrado na imagem de cotidiano que produzem, justamente enquanto transitam do presente para o passado. O resultado é uma pintura disforme e esmaecida onde o futuro, ou antes dele, o extraordinário, parecem algo tão distante quanto impossível.

Era dia de Natal. Andávamos meu marido e eu, pelas ruas centrais de uma cidadezinha do interior - dessas onde ainda é possível deixar as portas das casas abertas e o portão escorado, num convite à chegada sem aviso dos vizinhos e dos amigos. Cenário bucólico senão fosse outro ingrediente que me despertou a atenção.

De fato saímos a passear porque acreditávamos estar incomodados com o quase silêncio e a imobilidade que nos cercava. Atribuímos isso, incialmente, ao contraponto com a vida quase sempre corrida que levamos. Mas em seguida descobri que nossa inquietação podia ser por um pouco mais do que isso.

Ao espiar pela fresta da porta da frente de cada casa, de cada janela pela qual passamos, descobri o que realmente me incomodava: era o som baixo e distante que entrecortava o silêncio de duas ou três passadas; era a luminosidade azulada que molhava o rosto das pessoas sentadas em seus sofás aconchegantes; era a presença da televisão.

Em pleno dia de Natal vi as pessoas estatizadas diante dela. As salas estavam cheias - sim, os parentes vindos de longe haviam comparecido ao festejo da noite anterior -, mas estranhamente ninguém conversava, o máximo de reação que percebíamos era um sorriso ou uma cara de espanto diante do comentário incauto feito pelo apresentador de plantão. Nem o conteúdo do picadeiro eletrônico pautava um muxoxo entre a parentalha, ninguém sequer piscava. Assim muitas famílias passaram a tarde, a noite talvez. Quase ninguém nas ruas, quase ninguém falava, quase ninguém se movia.

E cá pensei comigo: algumas vezes precisamos da teoria para compreender o que é feito do mundo na prática, mas em outras, mesmo sem livros nas mãos ou sem computador para consultas, podemos reaprender velhos conceitos, como o da alienação.

Tivemos muito sobre o que conversar na volta para casa: uma viagem de mais ou menos 150 km... pois é, nem tão longe dali.

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diálogos VIII

Passo Fundo, 04 de outubro de 2011.
com Saramago, sobre a memória:

"Certos momentos há da vida que deveriam ficar fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados, por exemplo, neste evangelho, ou em pintura, ou moderadamente em foto, cine e vídeo, o que interessava mesmo é que o próprio que os viveu ou tinha feito viver pudesse permanecer para todo o sempre à vista dos seus vindouros, como seria neste dia de hoje, irmos daqui até Jerusalém para vermos, com os nossos olhos visto, este rapazinho, Jesus filho de José, enroladinho na curta manta de pobre, a olhar as casa de Jerusalém e a dar graças ao Senhor por não ter sido ainda desta vez que perdeu a alma. Estando a sua vida no princípio, que são treze anos, é de prever que o futuro lhe haja reservado horas mais alegres ou tristes que esta, mais felizes ou desgraçadas, mais amenas ou trágicas, mas este é o instante que escolheríamos para nós, a cidade adormecida, o sol parado, a luz intangível, um rapazinho a olhar as casas, enrolado numa manta e com um alforge aos pés, e o mundo todo, o de perto e o de longe, suspenso, à espera. Não é possível, ele próprio já se moveu, o instante veio e passou, o tempo leva-nos até onde uma memória se inventa [...]"

Trecho de O evangelho segundo Jesus Cristo.

Sem pontos. Cem. E Saramago (re) escripta o imaginário coletivo. 


Atravessados pelas metáforas do tempo corrido, na narrativa do escritor, é essa a porção compartilhada da nossa memória que viramos do avesso por meio da leitura; o que diante da trama equivale dizer, seu lado direito.

Sim, porque, por mais espantoso que pareça, podemos tomá-la de qualquer lado: ao se realizar através do texto (este ou qualquer outro) a memória, e em particular, esta memória, aparentemente encarcerada pela repetição do discurso religioso ocidental, e desperta no livro, é revirada. Tal percepção ancora-se em duas evidências essenciais: 1) o tecido textual não tem um fim, nem fim nem preciosidade guardada pelo invólucro das camadas do produto de uma narrativa total. Diferente da Crítica, como era praticada tradicionalmente, obstinada em encontrar o sentido oculto por trás do texto, ele não existe, não há uma verdade a ser investigada. Seus significados, assim como da antiga preza que o autor (re)encara, são construídos a partir de seu próprio desenrolar, como um novelo de lã que não guarda nada dentro da maçaroca de fios para lhe dar consistência, mas são os próprios fios enrolados uns aos outros que formam o novelo. 2) Saramago é um marginal: caminha nas beiradas da linguagem, subverte os sentidos arrasando a estrutura. Sua escrita nos toma pela estranheza e acaba estabelecendo uma relação dialógica entre o abalo do significado de certos códigos e a fabricação da memória.

Daí compreendermos a frase que, ao longo da leitura, nos atravessa: "cuide deste rebanho todos os dias como se fosse a coisa mais importante que vai fazer na vida". A oração está na boca do Pastor, ajuizada, a certa altura da história, ao adolescente Jesus. O resultado é que o menino, depois de um ano, já não se encoraja a matar um carneiro; nem deste nem de outro agrupamento; nem para comer, nem para os sacrifícios de "obrigação". O que aconteceu? Nada; nada mais do que o tempo; nada além do estorno provocado pelos encontros e desencontros da história, aquela rotina ausente das tragédias ou vitórias, os fatos não contados entre os grandes eventos da vida de alguém. 

Por isso Saramago anota, ao falar da necessidade de verossimilhança de uma novela, que, embora nos interessem os fatos essenciais, nunca supomos que os momentos decisivos do destino da personagem protagonista se sucedam um após os outros, sem intervalos de tempo e demais ocorrências pitorescas. Contar o que aconteceu entre um passo e o seguinte agrega ambiência de realidade a narrativa, de modo que, no fim das contas, é a sucessão de cada um desses eventos que nos leva a compreender qualquer coisa que seja. São todos eles, não apenas os que decidimos principais, a estrutura que sustenta os significados construídos ao ler o livro, e, por metonímia, os sentidos das lembranças que guardamos.

Assim, se, superado o susto da pontuação, temos a impressão de estarmos diante de mais um trecho da reza, logo nos vemos novamente arvorados no meio da leitura. Isso porque, ao mesmo tempo em que (re)conta os caminhos do menino Jesus, o autor vai tecendo um metatexto que revela a sua crença na pluralidade da interpretação de um texto e nos equívocos da memória, que sempre podem ser inventados (para o bem e para o mal).

O resultado dessa proposição é que, a cada página virada, revirados ficam os nossos sentidos. Afinal, trata-se da invencionice de uma memória, dos significados de um texto ou de toda a história de uma vida? E que vida? Intuo que a resposta seja: a nossa, não a do menino Jesus, pois o sujeito se realiza no texto e o texto na leitura do sujeito, feito jogo de mão. Ao (re)inventar o imaginário sobre preza tão antiga, o autor possibilita a reinvenção de nós mesmos.

diálogos VII

com minha MÃE, na Coluna do leitor da ZH de hoje 23/09/2011. Que orgulho ;-D!

 "Sem respaldo
Leio todos os dias sobre educação: que os professores devem se reciclar, que devemos melhorar a qualidade da educação, aumento dos dias letivos, etc. Gostaria de saber quando é que vão dizer para os alunos estudarem, quando vão dizer para os pais que os filhos são responsabilidade deles. A escola necessita de respaldo para poder ensinar."
Maria Dolores Barbosa de Paula
Professora - Passo Fundo

O resultado do comentário da minha mãe foi uma coluna do leitor inteirinha de debate sobre educação, hoje (24/09) na ZH. Viva Dona Dolores!!!

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O que será que há?

Passo Fundo, 20 de setembro de 2011.

Certa vez li em Barthes que todo o texto nos arrasta por seu tecido. Aliás, o autor defende que existem três vias através das quais um texto pode capturar o leitor: 1) por meio da relação fetichista que ele estabelece com as palavras, as imagens, os enquadramentos, ou melhor, o prazer de descobrir aquele conjunto de frases, de cenas, de seqüências; 2) o poder de suspense da narrativa, que ao mesmo tempo em que acontece também termina-se, pouco a pouco, diante de nós; e 3) o desejo da escrita,  “o desejo que o escritor teve de escrever: desejamos o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura” (pg.50).

Assim, seguimos lendo, ora motivados pela ânsia de nos reencontrar no texto, ora pelos abalos que ele pode nos causar, e ora pela fruição de uma nova escrita, em particular se ela for parte de um discurso de rupturas, que se desenrola margeando a linguagem.

Atenta ao meu velho guia, observo que tenho lido muito, mas talvez não esteja lendo o suficiente, ou os textos certos, ou os lendo direito (existe isso?). O fato é que não tenho vontades de escrivinhações. O que será que há? 

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    "ao reescrever o que dissemos, protegemo-nos, vigiamo-nos, riscamos as nossas parvoíces, as nossas suficiências (ou insuficiências), as hesitações, as ignorâncias, as complacências; [...] a palavra é perigosa porque é imediata e não volta atrás; já a scriptação tem tempo à sua frente, tem esse tempo próprio que é necessário para a língua dar sete voltas na boca; ao escrever o que dissemos perdemos (ou guardamos) tudo o que separa a histeria da paranóia" (BARTHES, 1981, p.10).

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quem é a garota da vitrine?

Minha foto
Sou formada em Radialismo e Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo e desde 2004 atuo como professora dos cursos de Comunicação Social na mesma instituição. Ainda na UPF, fiz especialização em Leitura e Animação Cultural, e recentemente concluí o doutorado pela PUCRS. Sempre trabalhei com o universo radiofônico, pelo qual sou apaixonada. Gosto particularmente das suas aproximações com a arte. Minhas últimas descobertas de pesquisa rondam em torno da produção de sentido (em nível verbal e não-verbal) sob a perspectiva semiológica.

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pelo caminho...

pelo caminho...
lendo... só lendo e imaginando uma história da nossa suposta história...

O museu é virar a gente de ponta cabeça. Tem versão digital ao clicar na imagem.

da era do pós-humano.

de Brenda Rickman Vantrease, sobre os poderes que se interdizem desde o início dos tempos.

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o que são scriptografias e outras escrivinhações?

O título deste blog foi inspirado nas observações feitas por Roland Barthes a cerca do processo de produção e significação dos textos que circulam pela prática social. Ele fala em scriptação, escrita, escritor e escrevente. No entanto, o nome scriptografias e outras escrivinhações, não passa de uma "licença" poética, por assim dizer, com o objetivo de nominar um espaço de livre expressão, em formatos e temas que fazem parte do meu cotidiano, assim como do cotidiano de quem por aqui passar.
    hola !



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