O que fazemos com as coisas que lemos no jornal?

*texto publicado originalmente e na íntegra na edição especial em comemoração as 86 anos do jornal 

“Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” Essa é uma frase do livro Rumor da língua, escrito em 1988, por um autor francês chamado Roland Barthes. Poderíamos entendê-la de inúmeras formas, mas me agrada pensar que se trata da capacidade que todo texto tem de acordar em nós, leitores, outros textos, aqueles que vamos guardando vida à fora no imenso reservatório da memória. 

Como quem monta um quebra-cabeças, vamos juntando todas as peças disponíveis: as que já tínhamos e as novas, encaixando umas nas outras e formando uma imagem,  ou seja, a nossa interpretação sobre aquele texto. Por isso dizemos que todo leitor é co-autor do texto que lê, porque é ele quem constrói o significado do que está lendo a partir da sua bagagem cultural, e que ao acessar um texto, qualquer um, encontra a si próprio refletido nas águas da leitura. 

Nós somos o que somos à media que vamos lendo e escrevendo o mundo ao nosso redor, não apenas com as letras, mas com os sons, com as fotografias e com as imagens em movimento produzidas e espalhadas por aí. Então, um filme ou um livro guarda em si dois segredos: a história da sociedade na qual ele foi escrito e a história de cada leitor que abre suas páginas, pois junto com elas abre também todas as suas leituras anteriores, as suas crenças, os seus valores e a suas experiências de vida.

Alguma razão para os textos jornalísticos serem exceção a essa dinâmica? 

Eu carregava esta pulga atrás da orelha, porque sempre fomos enganados pelo mito da imparcialidade jornalística, do puro relato informativo. Me perguntava como construir uma interpretação diferente, uma percepção minha da verdade, sobre uma verdade já decretada pelas páginas do jornal. Qual seria a contribuição do jornalismo, um exercício público, para a construção dos sujeitos, da individualidade das pessoas?

Movida por este pulga iniciei meu estudo de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul em 2008, e como objeto de análise escolhi o jornal O Nacional, em dois tempos: no registro do caso Clodoaldo, em 1979, e depois da virada do século no relato do caso Adriano da Silva. Algumas vezes me perguntaram por que escolher um jornal local para uma tese de doutorado, qual era a sua relevância?

Ao investigar O Nacional descobri, reveladas pelas tramas da narrativa jornalística de dois séculos, que as possibilidades de leitura em certas ocasiões transcendem essa instância da objetividade jornalística estabelecendo um vínculo ainda mais estreito entre o leitor e o texto. Através da leitura, reconhecemos o outro, nos reconhecemos, questionamos o lugar, o compromisso do sujeito com o mundo e ressignificamos a história como produto contingente. Ou seja, as imagens, as notícias publicadas nas páginas do jornal, nos dizem de diferentes formas, que somos responsáveis por esta história que está sendo escrita, que fazemos parte dela.

Descobri que cada notícia pode guardar em si uma surpresa, exigindo que nos questionemos sobre quem somos, sobre nossa identidade: o que nos aproxima ou nos distingue do outro, personagem do texto e, afinal, qual é a nossa contribuição para transformar essa realidade noticiada? 

Olhando para O Nacional, um veículo de circulação local, percebi a evidência de um dado universal sobre o jornalismo e sobre nosso papel como leitores. E para mim aqui está o grande valor deste jornal.

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    "ao reescrever o que dissemos, protegemo-nos, vigiamo-nos, riscamos as nossas parvoíces, as nossas suficiências (ou insuficiências), as hesitações, as ignorâncias, as complacências; [...] a palavra é perigosa porque é imediata e não volta atrás; já a scriptação tem tempo à sua frente, tem esse tempo próprio que é necessário para a língua dar sete voltas na boca; ao escrever o que dissemos perdemos (ou guardamos) tudo o que separa a histeria da paranóia" (BARTHES, 1981, p.10).

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quem é a garota da vitrine?

Minha foto
Sou formada em Radialismo e Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo e desde 2004 atuo como professora dos cursos de Comunicação Social na mesma instituição. Ainda na UPF, fiz especialização em Leitura e Animação Cultural, e recentemente concluí o doutorado pela PUCRS. Sempre trabalhei com o universo radiofônico, pelo qual sou apaixonada. Gosto particularmente das suas aproximações com a arte. Minhas últimas descobertas de pesquisa rondam em torno da produção de sentido (em nível verbal e não-verbal) sob a perspectiva semiológica.

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pelo caminho...

pelo caminho...
lendo... só lendo e imaginando uma história da nossa suposta história...

O museu é virar a gente de ponta cabeça. Tem versão digital ao clicar na imagem.

da era do pós-humano.

de Brenda Rickman Vantrease, sobre os poderes que se interdizem desde o início dos tempos.

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o que são scriptografias e outras escrivinhações?

O título deste blog foi inspirado nas observações feitas por Roland Barthes a cerca do processo de produção e significação dos textos que circulam pela prática social. Ele fala em scriptação, escrita, escritor e escrevente. No entanto, o nome scriptografias e outras escrivinhações, não passa de uma "licença" poética, por assim dizer, com o objetivo de nominar um espaço de livre expressão, em formatos e temas que fazem parte do meu cotidiano, assim como do cotidiano de quem por aqui passar.
    hola !



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