Uma carta para Pedro (diálogo XI)

Filho, te escrevo hoje porque, talvez, daqui há alguns anos, quando puderes compreender, terei perdido as palavras para falar do agora. Te escrevo hoje, porque hoje é o teu aniversário, e só o hoje tem esse sabor de presente, um sabor que quero suspender no tempo, um sabor que quero saber e compartilhar contigo para todo o sempre. Te escrevo para prender na escritura o calor que amor(na) minha vida desde que chegaste. Um calor de cobertor leve em dia de chuva, um calor de corpo que aquece, um calor de aconchego, um calor de amor que está sempre por perto, correndo pela casa. Um calor de verão ensolarado, para brincar na beira do rio ou do mar, para rolar na grama das praças, para comer fruta gelada. Por isso, teus sorrisos fazem dos meus dias brisa, e tuas febres, dos meus dias angústia. Mudaste não apenas o centro de gravidade do meu corpo, mas se converteste em centro, um centro em torno do qual orbito, fascinada.

Te observo, por exemplo, repetidas vezes, acordar de manhã e sair pelo apartamento procurando o gato só para perguntar-lhe: "tudo bem Iggy, você está bem?", mesmo sabendo que o bicho não vai lhe oferecer uma resposta convencional, e te amo todas as vezes por isso. Te amo quando, como por encantamento, conecta-se com algum desconhecido na rua ou numa história, para sentir: "mamãe, a moça está triste", ou quando conclui que está se divertindo com algo: "que legal! uau". Te amo quando, entre uma brincadeira e outra, sempre volta para os instrumentos musicais. Não importa se são de metal, madeira, plástico, isopor ou lata. Não importa se produzem um som real ou de faz de conta. O importante é toca-los. Te amo quando o capricho da vida nos permite passar muito tempo juntos, e então ganho muitos abraços espontâneos e sorrisos de amor. Aliás, amo o teu riso fácil, e as espiadas com o canto do olho. Amo quando te disfarças de gente crescida para apoiar a mão no queixo, ou os braços na cintura e fazer caras e bocas. Amo quando tira do bolso expressões ou frases surpreendentes e engraçadas, sempre na hora certa: "ups", "que chato", "boa ideia", "você é uma gatona mamãe" (hehehe). Te amo ao perceber que te perdes por alguns minutos no mundo da imaginação e brincas contigo mesmo, ou quando transforma um degrau na soleira de uma porta em sofá e o reflexo da lataria de um carro em televisão, esticando o braço e dizendo: "pip, pronto, liguei a TV mamãe". Qualquer lugar é lugar, tudo é novidade, tudo ainda pode ser brincadeira. "Porque vc parou Pedro?", "para olhar se vem carro, mãe". Amei o dia em que você, sei lá por qual razão, trocou o "mamãe" pelo "mãe". Não vou esquecer: era domingo, 28 de maio. Amo a tua generosidade, que gosta de cavalos, como o vovô Menegaz, de trens, como o vovô Darci, de skate, como o papai, de livros, como a mamãe, ou de plantas como a vovó Dodoi. Uma generosidade que te permite compartilhar, especialmente, e com cada um, aquilo que lhe desperta amor.

E te tanto te amar, meu menino, meus desejos para ti transbordam. Desejo que conserve uma medida saudável desse sorriso ingênuo e alegre que carrega nos olhos, e outra medida equilibrada desse moleque arteiro e persistente. Desejo que o bom senso te acompanhe, assim como a integridade e a ética. Desejo que saiba ver e ouvir o outro, reconhecer e, sobretudo, celebrar a diferença. Que esteja ao lado da liberdade, de escolha e de voz, assim como da igualdade, daquilo que nos une como humanos. Desejo que aprenda a respeitar o meio ambiente e valorizar a natureza como lugar e abrigo de todos os seres vivos. Desejo que cultive a leitura como prática cotidiana, que conheça a História (a tua, a dos outros e a do mundo) e que defenda as Artes e a diversidade cultural. Desejo que conheça pessoas e as perceba em sua complexidade, e que teu coração possa vibrar em cada um desses encontros. Desejo que tua imaginação frutifique, ao mesmo tempo em que tuas raizes se fortaleçam no mundo vivido: coisas lindas e transformadoras podem vir desse cruzamento! Desejo tudo isso hoje e desejo tudo isso sempre! Feliz aniversário meu amor.

Texto publicado originalmente em junho de 2017.

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    "ao reescrever o que dissemos, protegemo-nos, vigiamo-nos, riscamos as nossas parvoíces, as nossas suficiências (ou insuficiências), as hesitações, as ignorâncias, as complacências; [...] a palavra é perigosa porque é imediata e não volta atrás; já a scriptação tem tempo à sua frente, tem esse tempo próprio que é necessário para a língua dar sete voltas na boca; ao escrever o que dissemos perdemos (ou guardamos) tudo o que separa a histeria da paranóia" (BARTHES, 1981, p.10).

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quem é a garota da vitrine?

Minha foto
Sou formada em Radialismo e Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo e desde 2004 atuo como professora dos cursos de Comunicação Social na mesma instituição. Ainda na UPF, fiz especialização em Leitura e Animação Cultural, e recentemente concluí o doutorado pela PUCRS. Sempre trabalhei com o universo radiofônico, pelo qual sou apaixonada. Gosto particularmente das suas aproximações com a arte. Minhas últimas descobertas de pesquisa rondam em torno da produção de sentido (em nível verbal e não-verbal) sob a perspectiva semiológica.

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pelo caminho...

pelo caminho...
lendo... só lendo e imaginando uma história da nossa suposta história...

O museu é virar a gente de ponta cabeça. Tem versão digital ao clicar na imagem.

da era do pós-humano.

de Brenda Rickman Vantrease, sobre os poderes que se interdizem desde o início dos tempos.

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o que são scriptografias e outras escrivinhações?

O título deste blog foi inspirado nas observações feitas por Roland Barthes a cerca do processo de produção e significação dos textos que circulam pela prática social. Ele fala em scriptação, escrita, escritor e escrevente. No entanto, o nome scriptografias e outras escrivinhações, não passa de uma "licença" poética, por assim dizer, com o objetivo de nominar um espaço de livre expressão, em formatos e temas que fazem parte do meu cotidiano, assim como do cotidiano de quem por aqui passar.
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