Kanhgág-vi: a palavra do índio

Alguns alunos do curso de Jornalismo da UPF foram fazer intercâmbio em Coimbra – Portugal, e de lá me escreveram pedindo que respondesse algumas perguntas sobre a experiência que tive com um programa radiofônico realizado junto a comunidade indígena Kaigang da nossa região. O projeto se chamava “Kanhgág-vi: a palavra do índio no rádio”, e durou 3 anos. A entrevista foi publicada num site experimental que os alunos estão produzindo e agora compartilho com vcs:

Como foi o trabalho em relação as diferenças culturais? Era uma questão relevante? 
Sim.O objetivo do nosso projeto era produzir um programa radiofônico de 10 minutos para ser veiculado nas emissoras de rádio próximas a reserva. Queríamos garantir um espaço na programação radiofônica para esse grupo de pessoas em sua região de abrangência: o índio falando para o índio. Acreditávamos que esta proposta valorizaria uma característica inerente do rádio que é a personalização, ou seja, uma programação com a qual o ouvinte se identifique. Também observávamos que nenhuma emissora privilegiava o segmento em sua programação, o que não refletia a pluralidade do público que a escutava. Era um trabalho muito difícil e levamos quase dois anos para nos dar conta de que não era exatamente isso que os índios queriam. Seu propósito ao participar do projeto (aceitar nossas visitas, colaborar concedendo entrevistas e dividindo sua história conosco) não era construir um espaço com o qual se identificasse. Isso era o que nós achávamos importante. Para eles o que era fundamental era compartilhar a cultura indígena como não-índio. Certa vez uma cacique me disse: - precisamos que o não-índio escute o que temos a dizer, conheça nossa cultura e talvez assim aprenda a respeitá-la. Mais do que isso, hoje entendo que o que eles desejavam era eliminar nossa mediação e produzir por si só seus programas, gestar sua fala, organizá-la de uma forma muita peculiar a íntima.



Quais foram os desafios enfrentados para com a linguagem e a comunicação? 
Talvez o mais importante desafio que enfrentamos durante o projeto tenha sido o reconhecimento de que o índio tem um tempo próprio, de reflexão e fala. Para mim sua principal característica era o silêncio, longo e contundente, seguindo de uma onda de ponderações carregadas de tradição. Me parecia, a cada novo encontro, em diferentes reservas, que embora seu cotidiano se passe na contemporaneidade, o índio estava de algum modo conectado com o passado; que embora tenhamos cometido muitos erros por meio de um processo de aculturação na construção do Brasil, esse cordão umbilical não conseguimos cortar. Isso explicaria, por exemplo, porque os índios não conseguem se adaptar a vida fora da reserva. Conheci e trabalhei por alguns anos com um índio. Ele era estudante de história. Não tinha problemas financeiros, ou de discriminação na Universidade, mas percebíamos que ele sofria para se adaptar aqui: o ritmo que nos leva do pensamento a ação era muito diferente do dele. Depois de um tempo, quando perguntava algo a um índio eu já sabia que teria que esperar por alguns minutos até que as respostas fossem construídas. – é preciso pensar, é preciso pensar, era o que conselheiros e caciques me diziam. Acredito que essa herança, que pondera, é uma das responsáveis pela resistência, mesmo “abaixo de mau tempo”, de uma cultura que tem sido tão ignorada e soterrada pela sociedade do consumo na qual estamos metidos.

Alguma lembrança ou história que guarde do projeto? O que aprendeu com ele? 
Aprendi que fizemos e ainda fazemos coisas erradas em nome de coisas pretensamente certas para justificar a estrutura e a dinâmica de um país em desenvolvimento. Que é muito difícil exercitar nossa alteridade e reconhecer o outro como diverso de nós; em perceber e aceitar que por alguma razão ele está desconectado do cotidiano que conhecemos e, finalmente restaurar os nós de ligação. Temos o hábito de querer que o outro seja nossa imagem e semelhança, queremos espelhos feito Narciso, e levamos um tempo enorme para perceber que sua diferença é o que ele tem de mais precioso e que podemos aprender com ela.

Depois de trabalhar com as tribos, quais você acredita serem as principais dificuldades enfrentadas por elas, hoje no Brasil? Eles cultivam e ou preservam as suas tradições? De que forma?
Entendo que essas três últimas questões estão interligadas. A partir da minha observação e do tempo que convivi com as comunidades indígenas, penso que a principal dificuldade enfrentada por elas no Brasil hoje (e sempre) é a preservação de sua tradição e, consequentemente, da sua identidade. Nesse sentido, uma das coisas mais valiosas para uma cultura é a sua língua, a linguagem, o conjunto e a dialética dos signos que estabelece para se representar. Na língua, modo perene de comunicação de um povo, está expressa toda a sua cultura, suas relações de poder, seus jogos, seus rituais, convenções e crenças. Então, o que significaria roubar-lhe ou sufocar-lhe o direito de fala-la? 



Os povos Kanhgág no sul do Brasil estavam esquecendo sua língua (essencialmente oral). Apenas os anciãos falavam Kanhgág e a maioria deles estava morrendo. Foram necessários os esforços conjugados da FUNAI, das instituições de ensino da região e dos povos indígenas para conter este desaparecimento. Professores índios, atuando em escolas indígenas, passaram por um curso de formação bilígue e construíram um sistema de escrita para o kanhgág com o objetivo de que as crianças aprendam a língua materna de seu povo e a preservem. Problema resolvido? Não. Este, talvez seja só o mais grave deles e o reflexo da negligência com nossa trajetória histórica. Aos esquecermos dos povos indígenas, corremos o risco de esquecermos de nós mesmos.

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O que fazemos com as coisas que lemos no jornal?

*texto publicado originalmente e na íntegra na edição especial em comemoração as 86 anos do jornal 

“Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?” Essa é uma frase do livro Rumor da língua, escrito em 1988, por um autor francês chamado Roland Barthes. Poderíamos entendê-la de inúmeras formas, mas me agrada pensar que se trata da capacidade que todo texto tem de acordar em nós, leitores, outros textos, aqueles que vamos guardando vida à fora no imenso reservatório da memória. 

Como quem monta um quebra-cabeças, vamos juntando todas as peças disponíveis: as que já tínhamos e as novas, encaixando umas nas outras e formando uma imagem,  ou seja, a nossa interpretação sobre aquele texto. Por isso dizemos que todo leitor é co-autor do texto que lê, porque é ele quem constrói o significado do que está lendo a partir da sua bagagem cultural, e que ao acessar um texto, qualquer um, encontra a si próprio refletido nas águas da leitura. 

Nós somos o que somos à media que vamos lendo e escrevendo o mundo ao nosso redor, não apenas com as letras, mas com os sons, com as fotografias e com as imagens em movimento produzidas e espalhadas por aí. Então, um filme ou um livro guarda em si dois segredos: a história da sociedade na qual ele foi escrito e a história de cada leitor que abre suas páginas, pois junto com elas abre também todas as suas leituras anteriores, as suas crenças, os seus valores e a suas experiências de vida.

Alguma razão para os textos jornalísticos serem exceção a essa dinâmica? 

Eu carregava esta pulga atrás da orelha, porque sempre fomos enganados pelo mito da imparcialidade jornalística, do puro relato informativo. Me perguntava como construir uma interpretação diferente, uma percepção minha da verdade, sobre uma verdade já decretada pelas páginas do jornal. Qual seria a contribuição do jornalismo, um exercício público, para a construção dos sujeitos, da individualidade das pessoas?

Movida por este pulga iniciei meu estudo de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul em 2008, e como objeto de análise escolhi o jornal O Nacional, em dois tempos: no registro do caso Clodoaldo, em 1979, e depois da virada do século no relato do caso Adriano da Silva. Algumas vezes me perguntaram por que escolher um jornal local para uma tese de doutorado, qual era a sua relevância?

Ao investigar O Nacional descobri, reveladas pelas tramas da narrativa jornalística de dois séculos, que as possibilidades de leitura em certas ocasiões transcendem essa instância da objetividade jornalística estabelecendo um vínculo ainda mais estreito entre o leitor e o texto. Através da leitura, reconhecemos o outro, nos reconhecemos, questionamos o lugar, o compromisso do sujeito com o mundo e ressignificamos a história como produto contingente. Ou seja, as imagens, as notícias publicadas nas páginas do jornal, nos dizem de diferentes formas, que somos responsáveis por esta história que está sendo escrita, que fazemos parte dela.

Descobri que cada notícia pode guardar em si uma surpresa, exigindo que nos questionemos sobre quem somos, sobre nossa identidade: o que nos aproxima ou nos distingue do outro, personagem do texto e, afinal, qual é a nossa contribuição para transformar essa realidade noticiada? 

Olhando para O Nacional, um veículo de circulação local, percebi a evidência de um dado universal sobre o jornalismo e sobre nosso papel como leitores. E para mim aqui está o grande valor deste jornal.

blábláblá é o que eles falam... eles quem?

Li agora há tarde, no Observatório, o texto “Um ato de guerra, segundo o Pentágono”. O artigo foi publicizado originalmente no Wall Street Journal e traduzido para o monitor da imprensa brasileira por Jô Amado.

Embora o que me levou a lê-lo tenha sido a ocorrência da palavra cibercombate, ao terminar a leitura, seu conteúdo não pareceu versar sobre o potencial da tecnologia, mas sobre Política. Não sobre a política partidária, mas sobre a política das relações que movem o mundo. Melhor ainda seria dizer, não sobre a política, mas sobre o poder. No entanto, como invariavelmente vejo poder transmutando-se em política e política transmutando-se em poder, é um texto que versa sobre os dois.

Penso que o que está em questão no relato produzido por Siobhan Gorman e Julian E. Barnes, não é a necessidade de determinar quem invadiu o computador de quem, nem a necessidade de provar que esta invasão teria sido uma ação de determinado país, ao invés de uma organização, ou de um ato isolado de certo sujeito. Também não me parece que se trate do tamanho do estrago que a ação possa ter causado para validar o ato com Ato de Guerra, ou mesmo a construção de uma prerrogativa que equipare o ataque militar desterrotializado/virtual ao ataque militar armado, o que constituiriam a máxima “violência física versus violência simbólica”.

O que me parece estar no comunicado feito pelo Departamento de Defesa norte-americano, é justamente a revelação (ou seria melhor dizer, a manutenção) de quem PODE chegar a esta conclusão; quem PODE transformar uma expressão política: “Ato de guerra” (e, portanto, aparentemente sem força de lei), numa expressão legal. Mais uma vez o Doxa marca seu lugar, combatendo não o cibercombate, mas os discursos de resistência que pipocaram pelo mundo. Até porque, o que poderiam dizer as outras nações? Feito uma espiral do silêncio emudecem. Se alguém dentro do Pentágono determinar que esta ou aquela invasão É militar e que sua adoção incita a guerra, o que poderá detê-los? Não lembro de nos terem perguntado ou acatado quaisquer das nossas decisões. E digo aqui nós (os outros países) como um rótulo, <>, mas também me pergunto: somos tão diferentes assim? Já que não me recordo de nenhum momento da história do mundo em que os discursos encráticos não tenham sido calados ou convertidos.

Mais uma vez assistimos o capital simbólico da tecnologia associar-se como metonímea ao do campo da POLÍTICA, política internacional, revelando o PODER, o poder do discurso de uma cultura sobre as outras. 

Grupo da foto

Pessoas queridas,
estão todos convidados a visitar nossa Exposição e navegar por nosso site: www.grupodafoto.org 


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Maria Feia, o signo e o casamento

Semana passada, no projeto “Teatro, música e psicologia”, na Universidade de Passo Fundo, assisti a uma sketch teatral chamada “O casamento de Maria Feia”. A montagem foi baseada numa peça de Rutinaldo Miranda Batista Júnior, inúmeras vezes representada por diferentes grupos teatrais pelo Brasil à fora. Depois da intervenção do grupo D.I.A, alguns debatedores presentes no evento se propuseram a estabelecer sobre a encenação o tal olhar transdisciplinar que professores, pesquisadores e artistas, tanto buscam. Não pude participar da discussão até o fim; mas ocasiões assim sempre me deixam inquieta, em especial quando se trata da arte.

Como já disse outras vezes, para mim, ela é um espaço/discurso de transcendência. Atravessados pela arte lemos o cotidiano naquilo que ele tem de mais real e ao mesmo tempo mais onírico. E, diante deste mundo indiciado, que não é mais do que expressão da realidade social por nós subsidiada, podemos reconhecer ou questionar o nosso próprio mundo. Por isso costumo dizer que o discurso da arte deve ser também um discurso de ruptura, que subverte os estereótipos cultivados pelos falares do poder, ordinariamente reproduzidos, porque são, e para serem, dominantes.

Esta crença advém do reconhecimento de que todo discurso pode margear a linguagem preexistente, escorregar por suas fendas e nos acordar de um torpor de imitações. E é isso que quero da arte. É isso que, em determinado momento, o casamento faz.

A história conta o encontro entre Zé das Baratas e Maria Feia: primeiro rejeitada, justamente por sua feiura; depois desposada, por descobrir-se bonita. Foi no jogo estabelecido pelos signos do belo e do feio, durante a montagem, que me encontrei apanhada em derrisão pelo Discurso.

O texto (verbal) de Rutinaldo, não serve tanto a esta pequena subversão, uma vez que Maria Feia, transforma-se em Maria Bonita num “passe de mágica”, e estando eu diante do papel e da língua, bem pude imaginá-la transformando-se em outra imagem, um novo código, portanto, lógicamente possível de ser ressignificado. No entanto, na sketch, Maria transforma-se, sem transformar-se, e o que muda não é o código, mas o significado dele para nós.

Como diria Barthes, existem milhares de formas de significar a mesma coisa, pratica que faz do nosso exercício, seu inverso: dedicarmo-nos ao esforço de pluralizar o signo, de abrir-lhe os sentidos, perceber em códigos combinados e repetidos outros significados e outra vez derrubá-los.

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    "ao reescrever o que dissemos, protegemo-nos, vigiamo-nos, riscamos as nossas parvoíces, as nossas suficiências (ou insuficiências), as hesitações, as ignorâncias, as complacências; [...] a palavra é perigosa porque é imediata e não volta atrás; já a scriptação tem tempo à sua frente, tem esse tempo próprio que é necessário para a língua dar sete voltas na boca; ao escrever o que dissemos perdemos (ou guardamos) tudo o que separa a histeria da paranóia" (BARTHES, 1981, p.10).

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quem é a garota da vitrine?

Minha foto
Sou formada em Radialismo e Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo e desde 2004 atuo como professora dos cursos de Comunicação Social na mesma instituição. Ainda na UPF, fiz especialização em Leitura e Animação Cultural, e recentemente concluí o doutorado pela PUCRS. Sempre trabalhei com o universo radiofônico, pelo qual sou apaixonada. Gosto particularmente das suas aproximações com a arte. Minhas últimas descobertas de pesquisa rondam em torno da produção de sentido (em nível verbal e não-verbal) sob a perspectiva semiológica.

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pelo caminho...

pelo caminho...
lendo... só lendo e imaginando uma história da nossa suposta história...

O museu é virar a gente de ponta cabeça. Tem versão digital ao clicar na imagem.

da era do pós-humano.

de Brenda Rickman Vantrease, sobre os poderes que se interdizem desde o início dos tempos.

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o que são scriptografias e outras escrivinhações?

O título deste blog foi inspirado nas observações feitas por Roland Barthes a cerca do processo de produção e significação dos textos que circulam pela prática social. Ele fala em scriptação, escrita, escritor e escrevente. No entanto, o nome scriptografias e outras escrivinhações, não passa de uma "licença" poética, por assim dizer, com o objetivo de nominar um espaço de livre expressão, em formatos e temas que fazem parte do meu cotidiano, assim como do cotidiano de quem por aqui passar.
    hola !



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